O Notalatina sai hoje um pouco de sua temática (América Latina) para divulgar um discurso proferido pelo presidente da República Tcheca, Vaclav Ravel, em 19 de setembro deste ano, no Centro para Licenciados da City University, em Nova York, na sua despedida à última visita feita aos Estados Unidos.
Observem a lição de humildade e simplicidade que este homem dá. Coisa de sábio... Deveria ser apreendida por muitos dirigentes que conhecemos. Lendo esse discurso, não posso deixar de emocionar-me até às lágrimas, pensando em todo o sofrimento dos povos que viveram e ainda vivem sob o tacão do comunismo, e não posso deixar, também, de lamentar o retrocesso do nosso país. Enquanto povos lutam para livrar-se desse inferno vermelho, os brasileiros regozijam-se em recuar 100 anos no tempo e na História.
ADEUS À POLÍTICA
VACLAV RAVEL
Ainda conservo vivas lembranças do concerto de quase 13 anos, em fevereiro de 1990, quando Nova York me acolheu como presidente eleito da Tchecoslováquia. Naturalmente, não celebrou-se só para honrar-me pessoalmente. Foi uma forma de honrar, através de minha pessoa, a todos os meus compatriotas que tinham sido capazes de derrotar sem violência o corrompido regime que governava o país. E também foi para honrar a todos os que, antes de mim, ou comigo, haviam resistido a este regime, de novo sem violência. Muitos amantes da liberdade de todo o mundo viram a vitória da Revolução de Veludo da Tchecoslováquia como estandarte da esperança em um mundo mais humano, um mundo em que os poetas possam ter uma voz tão poderosa quanto os banqueiros.
Nossa reunião de hoje, não menos cálida e impressionante, me leva de um modo quase natural à questão de se mudei ou não nestes quase 13 anos, que têm feito de mim nessa permanência incompreensivelmente longa como presidente, e como tenho me modificado nas inumeráveis experiências que tenho vivido nestes tempos tumultuados.
E descobri algo assombroso: embora devesse esperar que esta riqueza de experiências me tivesse dado mais tranquilidade, mais rodagem e confiança em mim mesmo, o certo é que aconteceu tudo ao contrário. Neste tempo perdi muita segurança em mim mesmo, e sou muito mais humilde. Pode ser que não acreditem, porém cada dia padeço mais e mais de medo do público; cada dia tenho mais medo de não estar à altura de minha tarefa, ou de estropiar tudo. Cada vez mais, me resulta mais difícil escrever meus discursos e quando os escrevo, tenho mais medo do que nunca de repetir-me uma ou outra vez. Cada vez tenho mais medo de ficar lamentavelmente sem expectativas, de que, de alguma forma tornarei manifesta minha falta de preparo para este trabalho, de cometer erros ainda maiores, apesar da minha boa fé, de deixar de ser alguém em quem se possa confiar e, por conseguinte, perder a legitimidade para fazer o que faço.
E enquanto outros presidentes mais jovens que eu, em termos de tempo de permanência no cargo, desfrutam de cada oportunidade de conhecer-se, ou de conhecer gente importante, ou de aparecer na televisão ou fazer um discurso, a mim tudo isto cada vez produz mais temor. Às vezes ocorrem situações em que deveria agradecer por ser uma grande oportunidade, e deliberadamente tento evitá-las pelo medo quase irracional em desperdiçar a oportunidade de uma ou outra forma, e talvez inclusive prejudicar uma boa causa. Em poucas palavras, parece que cada vez tenho mais dúvidas, inclusive de mim mesmo. E quantos mais inimigos tenho, mais me ponho do seu lado mentalmente, com o que me converto no meu pior inimigo.
Como poderia explicar esta evolução completamente imprevisível de minha pesonalidade?
Talvez reflita mais detidamente sobre isto quando já não for mais presidente, coisa que ocorrerá em princípios de fevereiro próximo, quando tenha tempo para afastar-me um pouco, para distanciar-me um pouco da política e quando, como homem completamente livre outra vez, comece a escrever coisas que não sejam discursos políticos.
Porém, no momento permitam-me sugerir uma das muitas possíveis explicações para esta situação. Conforme vou envelhecendo, à medida em que amadureço e adquiro experiência e razão, me vou dando conta plenamente do alcance de minha responsabilidade e das estranhamente diversas obrigações derivadas do trabalho que aceitei. Além disso, vai-se aproximando inexoravelmente o momento em que os que me rodeiam, o mundo – o que é pior –, minha própria consciência, já não me perguntam quais são meus ideiais e objetivos, nem o que é que desejo conseguir, nem como quero mudar o mundo, senão que começaram a perguntar-me o quê efetivamente consegui, quais dos meus propósitos tornei realidade e com quais resultados, qual gostaria que fosse meu legado e que tipo de mundo gostaria de deixar atrás de mim. E de repente sinto que a mesma intranquilidade espiritual e intelectual que uma vez me levou a fazer frente ao regime totalitário e ir preso por isso, agora me faz duvidar completamente do valor de meu próprio trabalho, ou do trabalho daqueles que apoiei, ou daqueles cuja influência eu tenho possibilitado.
Antes, quando recebia títulos honoríficos e escutava discursos laudatórios que se pronunciavam em ocasiões assim, muitas vezes ria ao ver que em muitas dessas homenagens me descreviam como um herói de conto de fadas, um rapaz que, em nome do bem, saiu dando cabeçadas contra o muro de um castelo habitado por reis malvados, até que o muro caiu e o mesmo se converteu em rei e governou sabiamente durante muitos longos anos. Não é minha intenção obstaculizar a importância dessas ocasiões: valorizo profundamente todos os meus doutorandos e sempre me comove recebê-los.
Todavia, meciono este outro aspecto das coisas, em certo sentido cômico, porque estou começando a entender que, na realidade, tudo tem sido uma trama diabólica que o destino me impôs. Porque efetivamente me vi catapultado de um dia para o outro em um mundo de conto de fadas e depois, nos anos posteriores tive que voltar ao mundo real para dar-me conta de que os contos de fadas são só uma projeção dos arquétipos humanos, e que o mundo não está absolutamente estruturado como um conto de fadas. E assim, sem nem sequer haver tentado converter-me em um rei de conto de fadas, e apesar de encontrar-me praticamente obrigado a ocupar este cargo por um acidente da história, não recebi nenhuma imunidade diplomática por essa dura queda à terra, do estimulante mundo de emoção revolucionária, ao mundo terreno da rotina burocrática.
Por favor, entendam-me: não estou dizendo que tenha perdido minha luta, nem que tudo foi em vão. Pelo contrário, nosso mundo, a humanidade, e nossa civilização, encontram-se atualmente no que talvez seja a encruzilhada mais importante de sua história. Temos mais oportunidades do que nunca nos últimos tempos, de compreender nossa situação e a ambivalência do rumo que levamos, e escolher o caminho da razão, da paz e da justiça, não o que nos leve à nossa própria destruição.
Só digo isto: seguir o rumo da razão, da paz e da justiça exige muito trabalho, abnegação, paciência e conhecimento, uma análise geral sossegada, a vontade de arriscar-se em não ser compreendido. Ao mesmo tempo, significa que todos deveríamos poder julgar nossa própria capacidade e operar, em consequência, com a expectativa de que nossas próprias forças cresçam com as novas tarefas a que nos destinamos, ou se esgotem. Em outras palavras, já não vale confiar em contos de fadas nem em heróis de contos de fadas. Já não vale confiar nos acidentes da história , que levam os poetas a lugares onde caem impérios e alianças militares. Deve-se escutar detidamente as vozes de alarme dos poetas e levar-lhes muito a sério, talvez muito mais a sério do que as vozes dos banqueiros e dos agentes da bolsa. Porém, ao mesmo tempo, não podemos esperar que o mundo se transforme em um poema da mão dos poetas.
Seja como for, de uma coisa estou seguro sim: independentemente da forma com que tenha desempenhado o papel que se me foi concedido, independetemente de se o queria desempenhar, ou de se o merecia ou não, e independentemente do muito ou pouco satisfeito que esteja de meus esforços, entendo que minha presidência tem sido um magnífico presente do destino. Ao fim e ao cabo, tive a oportunidade de participar de uns acontecimentos históricos que verdadeiramente mudaram o mundo. E isso, como experiência vital e oportunidade criativa, valeu a pena apesar de todas as armadilhas que jazem ocultas.
E agora, se me permitem, tentarei finalmente distanciar-me um tanto de minha pessoa e formular três idéias que sempre têm dado certo ou , melhor, três velhas observações que minha passagem no mundo da alta política não tem feito senão confirmar:
1. Se a humanidade quer sobreviver e evitar novas catástrofes, a ordem política mundial tem que ir acompanhada de um respeito mútuo e sincero entre as diversas esferas da civilização, da cultura, das nações ou dos continentes, e por um esforço sincero de sua parte para buscar e encontrar os valores ou imperativos morais básicos que têm em comum, em transformá-los nos cimentos de sua coexistência neste mundo globalmente conectado.
2. Há que fazer frente ao mal em seu próprio seio e, se não há outra forma, terá que fazê-lo mediante o uso da força. Se é necessário utilizar-se o incrivelmente sofisticado e caro armamento moderno, que se use de uma forma que não prejudique as populações civis. Se isto não é possível, terão desperdiçado os milhares de milhões gastos nessas armas.
3. Se examinarmos todos os problemas que o mundo enfrenta hoje em dia, quer sejam econômicos, sociais, ecológicos ou os problemas gerais da civilização, queiramos ou não sempre nos encontraremos com o problema de se um determinado roteiro é ou não adequado, ou se é responsável desde o ponto de vista planetário a longo prazo. A ordem moral e suas fontes, os direitos humanos e as fontes de legitimação desses direitos humanos, a responsabilidade humana e suas origens, a consciência humana e a penetrante visão daquele no qual nada pode ocultar-se com um manto de nobres palavras, são segundo minhas mais profundas convicções e experiência, os temas políticos mais importantes do nosso tempo.
Queridos amigos, ao olhar ao meu redor e ver tantas pessoas famosas que parecem haver descido de algum lugar dali de cima, do firmemento estrelado, não posso evitar de sentir que no final de minha longa queda de um mundo de conto de fadas à realidade crua, de repente me encontro novamente num conto de fadas. Talvez só haja uma diferença: agora posso valorizar esta sensação mais do que quando, há 13 anos me encontrava em circunstâncias similares.